domingo, 9 de dezembro de 2012

Vidas

Lembras-te de mim. Eu era o teu cão na tua outra encarnação. Ou seria já reencarnação. Eu ficava sentado ao teu lado, com os olhos a brilhar só pelo prazer da tua companhia. Depois lá te dignavas a enviar-me um osso que percorria o espaço entre nós, e que eu contente apanhava no ar sentindo que isso te daria algum prazer. Quando os dias não te corriam bem, eu passava rápidamente de cão a bode, expiatório neste caso. Enraivecido, que é uma doença que acontece também aos cães, corrias comigo a pontapé e eu corria também, mas para o quintal. Escondia-me na sebe de buxo e esperava em silêncio que saísses de casa. Por vingança devassava o jardim de forma a que nada ficasse intacto. Quando regressavas eu avaliava á distância o teu semblante, tentando prever o futuro e depois de verificar que por ali não viria tempestade, aproximava-me lentamente com um pé no ar e a lamber o outro.
Rosnava de mansinho mil desculpas, suplicando que não ligasses a minha coleira anti-pulgas aos elos da corrente de aço que era sempre uma promessa de prisão perpétua. Eu ficava contente quando me levavas a passear. Descíamos a rua ao lado um do outro e tu indiferente depositavas uma esmola no chapéu do teu cego preferido. Eu indiferente olhava para o cão do cego. O cego aspirava o teu perfume de mulher e engolia a saliva da sua indignação. Porque ninguém dá o que precisa. Era um rafeiro pensava eu. O cão do cego. Agora tu és o meu cão. Eu era o teu cão. Agora sou o cego.

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