domingo, 16 de dezembro de 2012

Vanessa


De chapéu-de-chuva, mesmo que esta não aconteça ou se anuncie, em horas de grande movimento ou até naquelas que apelidamos de mortas, não sei porque é que não chamamos vivas às outras, é possível ver uma silhueta que numa qualquer rua de Leiria vai desenhando os seus contornos. Desfilando modelos numa passerelle virtual, que esse é agora um mundo bem real, já se confunde com a nossa paisagem humana, porque as formas plásticas de vestir e as posturas se diversificaram. Não muito. Assim os homens foram esquecendo o fato cinzento, o colarinho e as meias brancas, o colete e as mangas-de-alpaca e até em muitos dias a gravata, que a liberdade sexual acrescentou ao vestuário de algumas mulheres, ou de algumas mulheres em alguns dias vá lá saber-se porquê. Quanto a nós homens, também a envergamos, desculpem o termo, como símbolo fálico. Uns dias em cores deliberadas, outros em que o nó ou o comprimento denunciam alguma subtileza erótica ou um completo despudor. Numa época em que se esbatem as diferenças entre os sexos, assumem muito mais as mulheres a proximidade com a forma de vestir masculina. A nossa revolução é tranquila. Não há movimentos de massa com a finalidade de queimarmos soutiens. O único homem que se veste com roupas femininas em Leiria ainda é o Vanessa. Ou será a Vanessa?. Vamos esperar e ver o que é que isto dá.

Pintura


domingo, 9 de dezembro de 2012

Baía dos Tigres

A Baía dos Tigres era o nome de uma povoação pesqueira no sul de Angola para onde emigraram muitos pescadores Algarvios. Arriscavam a vida, em frágeis embarcações, em viagens de cerca de quarenta dias dirigindo-se a um local agreste, na foz do rio Cunene. Areal imenso, inicialmente sem água potável, e sempre sem terra que permitisse cultivar ficavam sujeitos ao abastecimento do exterior. A única coisa que chovia era areia que picava a pele como alfinetes. Inicialmente era uma restinga. Transformou-se em ilha pela invasão do mar o que só permitia o acesso de barco ou de avioneta. Tenho um amigo cujos pais lá viveram enquanto o seu pai serviu nesse local o ministério do mar, se é que na altura se chamava assim, nos meados do século passado. Ele frequentava o liceu Diogo Cão no Lubango e ali ficaria no internato dessa instituição durante o período de aulas. Findo este, regressaria para Moçâmedes de comboio e daí de avioneta para a Baía dos Tigres. Aqui a rua principal, senão única, era também a pista de aterragem no referido lugar. Na primeira vez que o meu amigo aterrou neste local ninguém o esperava porque de telemóveis não havia noticias. Quando ele saiu do aparelho um homem negro que servia em casa dos seus pais correu a avisar : “Sinhora” “minino” vem aí. Mas como tu sabes que é o menino se tu nem conheces?.  Conheço sim “sinhora”. Andar “iguarzinho” do patrão.

Arrumadores

Quando chego a um parque de estacionamento e vejo um indivíduo a esbracejar lembro-me logo das hospedeiras de bordo, nos aviões, a explicar quais os gestos que devemos fazer para em caso de acidente, morrermos mais depressa. Falando de aviões podia ainda lembrar um homem sozinho gesticulando com o monstro branco estacionado na placa do aeroporto. Não sei se os que acabo de referir são ainda necessários. Os dos parques de estacionamento de viaturas são. Tenho um amigo em Lisboa que tendo que estacionar todos os dias numa zona difícil telefona sempre ao arrumador antes de chegar para este lhe guardar o lugar. É um acordo avençado. Um amiga que há dias não queria dar a moeda liquidante do respectivo serviço, porque havia parquímetro, encontrou-se sem trocos para introduzir na referida máquina surpreendentemente activa. Então o arrumador a quem havia negado o pagamento logo lhe facilitou o troco. Desistir de pedir dinheiro a senhoras finas é também recomendável para não ouvir respostas grossas do tipo quem me dera ter a sua força de vontade para não comer há três dias. Surpreendido fiquei eu quando um arrumador me perguntou se queria que tirasse o carro dele para eu arrumar o meu dado que não havia mesmo lugar nenhum. Para que esta arte não se perca há jogos informatizados para os miúdos aprenderem a arrumar carros. Pelo que observo a remuneração é melhor do que as dos arrumadores de palavras. Da próxima vez que for confrontado com uma mão esticada mal acabe de arrumar respondo: só dou dinheiro se for para a droga. É que afinal o arrumador sou eu. Eles só se orientam.

Pintura


Pintura


Cartaz Exposição


Vidas

Lembras-te de mim. Eu era o teu cão na tua outra encarnação. Ou seria já reencarnação. Eu ficava sentado ao teu lado, com os olhos a brilhar só pelo prazer da tua companhia. Depois lá te dignavas a enviar-me um osso que percorria o espaço entre nós, e que eu contente apanhava no ar sentindo que isso te daria algum prazer. Quando os dias não te corriam bem, eu passava rápidamente de cão a bode, expiatório neste caso. Enraivecido, que é uma doença que acontece também aos cães, corrias comigo a pontapé e eu corria também, mas para o quintal. Escondia-me na sebe de buxo e esperava em silêncio que saísses de casa. Por vingança devassava o jardim de forma a que nada ficasse intacto. Quando regressavas eu avaliava á distância o teu semblante, tentando prever o futuro e depois de verificar que por ali não viria tempestade, aproximava-me lentamente com um pé no ar e a lamber o outro.
Rosnava de mansinho mil desculpas, suplicando que não ligasses a minha coleira anti-pulgas aos elos da corrente de aço que era sempre uma promessa de prisão perpétua. Eu ficava contente quando me levavas a passear. Descíamos a rua ao lado um do outro e tu indiferente depositavas uma esmola no chapéu do teu cego preferido. Eu indiferente olhava para o cão do cego. O cego aspirava o teu perfume de mulher e engolia a saliva da sua indignação. Porque ninguém dá o que precisa. Era um rafeiro pensava eu. O cão do cego. Agora tu és o meu cão. Eu era o teu cão. Agora sou o cego.